Pai,
fomos amigos, melhores amigos
a vida precisava da nossa proximidade
como o fósforo precisa da lixa
para existir em chama.
No dia 25 de julho de 2024, aos 91 anos,
o senhor partiu.
Abriu-se um buraco que não era metáfora:
cadeira vazia, chave que já não gira,
silêncio morando no corredor.
Eu, meio homem, meio eco.
Eu, à procura de um braço que soubesse
o nome do meu cansaço.
Sete anos de espera em fila de adoção,
sete anos é uma geografia longa:
dias comprimidos em envelopes,
noite com ponteiros presos.
Eu pensava: “Se eu morresse, o pai morreria;
ele precisava da minha presença
para que a presença dele ficasse inteira em mim.”
E as pessoas não entendiam essa matemática
de dois que se sustentam.
Então o telefone teve voz de milagre,
a porta respirou fundo,
eu e minha esposa choramos como quem aprende
de novo a soletrar a palavra vida.
Chegou nossa menina: um ano e três meses de sol
Pai, minha filha finalmente chegou.
Ela é linda, esperta, inteligente,
tem um riso que desarma portas,
um costume de abraços que conserta o ar,
beijos miúdos que remendam a tarde.
É carinhosa ao ponto de redimir as segundas-feiras,
e engraçadinha de um jeito que ensina o relógio
a ir devagar.
Minhas irmãs são por ela apaixonadas,
e ela por elas, um vaivém de afeto
que dá à sala uma claridade nova.
Ela faz carinho na minha mãe
com mãos pequenas que sabem respeito,
e a minha mãe, tocada,
retoca de memória a fotografia do senhor.
Pai, ela não terá o seu olhar
mirando de lado as coisas do mundo,
nem a presença pontual do seu sorriso.
Mas vai saber quem é o senhor.
Eu contarei: “Esse é o vô Gut”.
Direi do seu humor que dizia verdades
com um fiapo de riso,
da sua fé que cabia inteira
no gesto de abraçar a todos,
da sua necessidade diária
de me ter vivo para ficar tranquilo.
Mostrarei retratos,
mas, sobretudo, os lugares onde o senhor não aparece
e, mesmo assim, está:
na quina da mesa, no café que esfria,
no modo como ela adormece encostada
no ombro que era meu e era seu.
E quando ela me abraça
testa na minha, mão no meu rosto
sinto o senhor chegar junto,
leve, quase ar:
a sua ausência se corrigindo por linhas inesperadas.
Porque estando ela comigo,
o senhor também está.
É como se um fio antigo se emendasse
no tecido novo do dia.
Eu digo ao senhor, com o colo cheio:
voltei a estar preenchido.
Eu, que era meio, voltei a ser inteiro.
Esta menina é a benção que Deus me deu
para girar de novo a roda do tempo,
para que a casa reaprenda o seu idioma.
Houve o dia em que ela veio para ficar,
e não voltaria mais para o abrigo.
Nesse instante, pai, o buraco mudou de ofício:
deixou de ser queda, virou canteiro.
Plantei o seu nome nele
e nasceu um riso de criança.
Eu seguirei contando a ela quem o senhor foi
sem pressa, com paciência de mar
que visita a mesma praia todos os dias
e sempre encontra um pequeno tesouro.
Direi: “O vô Guti cabia inteiro no gesto
de precisar de nós e nos fazia caber nele.”
Ela crescerá sabendo
que amor é essa engenharia de presenças,
mesmo quando uma das portas se fecha.
Pai, ainda há pedras no caminho,
mas agora há mão miúda que me puxa para frente.
E a vida, que por um tempo não tinha graça,
volta a querer ser vivida:
porque a sua neta chegou,
e com ela veio o senhor
modo discreto de milagre
sentar-se, sem alarde,
na cadeira que a saudade guardou.
Renato Paes Leme